Vodafone Paredes de Coura 2023 – 30ª Edição
Nas margens do Rio Taboão, criaturas sedentas por celebrar a música ao vivo, reúnem-se para a festa anual que decorre na pacata vila de Paredes de Coura. Este poderia ser o início de um conto de fadas, no entanto, a melhor parte é que se trata de uma história real, com vista a ser vivida todos os anos.
O Vodafone Paredes de Coura é peça única no panorama dos festivais de música em Portugal, e, este ano, para festejar o seu 30º aniversário trouxe um cartaz surpreendente, com o ADN de sempre.
Dia 16
Dry Cleaning
As verdejantes paredes do habitat natural da música aguardavam pacientemente o toque dos já costumeiros festivaleiros. Lá tão perto, ecoavam os sabores do rio e as sonoridades vizinhas quando renasceu, um ano depois, a vida no placo principal. Os londrinos traziam o seu (des)afinado post-punk bem na ponta da língua para descolar uma noite memorável. As spoken words, elemento crucial e distintivo de Dry Cleaning, lançaram-se indelevelmente como poção hipnotizante pelo seu público, que marchava com seus ritmos nesta abertura de festival.
Jessie Ware
Quase como água e azeite, o rock e pós-punk que pairavam ainda silenciosamente sobre os festivaleiros, rapidamente deram lugar ao vigoroso carisma da diva moderna, Jessie Ware. Com olhar e vida pujantes, a londrina conduziu um espetáculo digno de estrela, em todos os seus sentidos – dança, luzes, figurinos, e, já se sabe, a doce, porém intensa, voz. O público rejubilou-se ainda com a mágica reinterpretação de Believe, de outra estrela global do pop, Cher.
Bicep
A noite no palco principal fechou-se com Bicep. E, diga-se, o nome não engana – a dupla irlandesa trouxe o vigor e a vida que tentava já fugir dos festivaleiros mais abatidos. Os dois amigos de infância pareciam não ter deixado esses tempos longínquos, numa sintonia própria, enquanto abençoavam o seu público com set ideal para o fecho deste primeiro dia de Couraíso.
Dia 17
Du Nothin
Ainda se sentia o sol nas margens do rio, e, sentados na relva, pudémos disfrutar do concerto dos Du Nothin. A banda de Duarte Appleton pontua-se de um estilo rock, com veias de Elvis Presley e Arctic Monkeys como referência atual. “Fashionable Late”, “Wonderful”, “Hold your hand” foram algumas das músicas a que se pôde dançar. O concerto contou ainda com a presença especial de dois dinaussauros, que muito quiseram “dar um aperto de mão”, ainda que isto seja anatomicamente possível. Algumas das pessoas que assistiram não resistiram em levantar-se e ir para a front line do palco “Jazz na relva”, onde a festa ia ganhando cada vez mais adeptos. Terminou com um medley dos Beatles onde muito se fez o twist e se gritou o quão bom que foi.
Tim Bernardes
O concerto de Tim Bernardes arrepiou as profundezas do ser e massajou os sentidos de uma forma pura e generosa. O artista brasileiro espalhou a sua genialidade com temas como “Nascer, Viver, Morrer”, “BB (Garupa de Moto Amarela )”, “Ela”, entre outros. Era nítida a emoção que floria do público: aquando da linha de piano de “Recomeçar”, um silêncio ensurdecedor por parte do público tomou conta do habitat natural da música. O poder que a música tem de impactar desta forma é, realmente, especial. A meio do concerto, houve um momento de “discos pedidos”, fazendo com que a conexão público-artista se tornasse ainda mais forte, como se estivessemos numa tertúlia onde o amor pela música e experiências de vida se tornassem o elo de ligação.
Sudan archives
Sudan Archives não tarda a chegar e envolver até os mais desligados e desconhecidos com seus encantos. Não estivesse a norte-americana de violino em riste, pronta para refrescar o dia dos festivaleiros, dir-se-ia que não sabiam com o que contar. Os velhos e novos fãs deixam-se sempre surpreender pela pluralidade de sonoridades que se escapuliram da sua caixinha de música e dançam incontrolavelmente por um palco que agora lhes pertence.
Loyle Carner
As cores do dia cerraram e o silêncio instalou-se para receber o poeta de serviço nesta segunda noite de Couraíso. Loyle Carner não se ficou pelas rimas que o tornaram tão célebre – criou poesia ambulante. Com a sua banda edificou um verdadeiro palácio dos sentidos, envolvente, protegido, íntimo, com aqueles que tão terna e sensivelmente o escutavam a interpretar célebres temas, como ‘Damselfy’ ou ‘Ottolenghi’. Vulnerável e honesto, o rapper inglês partilhou a sua alma e não escondeu a beleza em ver tal reciprocidade. Fechou o concerto com a intemporável memória de um freestyle exclusivo, ali, aos pés do Coura.
Dia 18
Kokoroko
A banda norte americana, Kokoroko, deu uma festa de arromba de jazz, onde a melodia de saxofones, tambores, deram a magia certa naquele início de tarde que prometia o dia de chuva em Parede de Coura (como não poderia deixar de ser!). Partilharam as canções do seu mais recente álbum “Could we be more” (2022), e não deixaram ninguém indiferente à pluralidade de talento concentrado naquele espaço. Houve quem dançasse, quem ficasse confortavelmente sentado na relva do anfiteatro natural, mas todos absorveram a genialidade boa desta banda com toda a sua alma.
Expresso Transaltântico
Depois da festa Kokoroko, fez-se a piscina para o palco Yorn, que foi a paragem por esta viagem de Expresso Transatlântico – e que viagem! Começou-se por ouvir os acordes da guitarra portuguesa de Gaspar Varela, e os arrepios já espreitavam para ver o que por lá iria acontecer. A magia de um concerto de Expresso Transatlântico, é algo surreal e do imaginário digno de banda sonora de filme. Sem dúvida que a sincronia entre guitarra, guitarra portuguesa, trompete e piano, criam a magia perfeita. Instrumental do início ao fim, mas com os coros das nossas emoções a acompanhar. Houve a partilha da música Celeste Azul – uma homenagem à avó de Gaspar e Sebastião Varela – Celeste Rodrigues (irmã de Amália Rodrigues (!!!)). No final, já Gaspar se encontrava no meio da multidão – uma roupagem certamente diferente à de guitarrista de guitarra portuguesa, mas, ainda assim, não menos especial.
Black midi
A chuva não tardou a abençoar veementemente os inquietos festivaleiros. Dir-se-ia que, bem fresquinha, não sossegou até sentir bem a pele daqueles inocentes espectadores. Mas, com certeza sabeis já, depois de tanto relato acerca dos feitos destes heroicos habitantes do Coura, que não foram estas adversidades meteorológicas a demovê-los. A espera por Black Midi findava perante os seus olhos. E os ingleses que redescobrem o rock souberam dosear muito bem essa espera – antes de irromperem misteriosamente palco adentro fizeram soar ‘Suavemente’ no coração dos espectadores. É natural, então, que estes seguidores espelhem exatamente a mesma coragem que os conterrâneos que encaram – black midi estão invariavelmente a revolucionar o rock mundial diretamente da velha grã bretanha. Num concerto que não perdeu fôlego, passando por ‘Welcome to Hell’ e ‘953’, a êxtase fez esquecer a passagem do tempo – se não confiam em mim, os inelutáveis moches enlameados não me permitem mentir.
Little Simz
Por mais que se agrupem e coreografem as palavras, em movimentos ora suaves ora pujantes, parecem recusar-se, atónitas e incapazes, a descrever o fenómeno celestial que o Palco Vodafone viu nascer a seus pés.
Aproximava-se um dos mais aguardados concertos de todo o festival e, bem juntinho a ele, adiantava-se também imponente dilúvio, sem descanso, incontrolável. Porém, acreditem quando asseguro que em poucos minutos uma agente divina, em poucos movimentos, o reduziu a pó. Sim. Ali, bem diante dos nossos olhos, Little Simz cessou a rotação incessante do mundo para dar aos seus fãs um concerto que ainda daqui a décadas se vangloriarão por ter assistido. Sozinha durante grande parte do tempo, fez um palco imenso tão pequeno, abrindo e oferecendo um pouco da sua tão madura voz e ainda mais madura alma a um coro em êxtase. Com um concerto em que desfilaram pérolas do aclamado ‘NO THANK YOU’ e do indisputável, transformador, ‘Sometimes I Might Be Introvert’, Little Simz ascendeu incomensuravelmente a medida daquilo que deve ser uma performance. Aquilo que deve ser um artista, inclusive, com a sua presença e entrega incomparáveis, maduras, e de autêntica lenda. Lenda que aguarda pacientemente a tomada do mundo, confiante. E que sabe que o tomará. Pelo meio, revelou a mais pura das verdades “Portugal, you’re witnessing greatness”. E estava. E rendia-se, deliciosamente, à prodigiosa aparição que encerrou, para tantos, a mais bela das noites.
Dia 19
Lee Fields
“Depois da tempestade vem a bonança” – o ditado sempre certo. Depois do dia chuvoso, que fez do habitat natural da música um valente pântano lamacento, o dia foi tornando-se, aos poucos, cada vez mais bonito. Para abrir o palco do último dia do festival, Lee Fields esbanjou o charme norte-americano. “Little JB” como é conhecido, dada a sua semelhança com James Brown, mostrou-se jovem de energia tendo entregado tudo de alma e coração. O músico que já colaborou com Kool and the Gang, Hip Huggers, O.V.Wright, Darrel Banks, and Little Royal, partilhou muitas músicas do seu álbum “My World” (2009), onde “Ladies” tem um brilho diferente e “Honey Dove” encantou tudo e todos! Que bonita festa que foi.
Yin Yin
Foi a primeira vez que os Yin Yin pisaram e espalharam a sua magia por Portugal. A banda neerlandesa, composta por membros da Holanda, Myanmar exploram o que a música psicadélica, dançável do Sudeste Asiático dos anos 60 e 70 – fruto desta multiculturalidade interna. Partilharam as canções dos seus álbuns “The Rabbit that hunts tigers” (2019) e “The age of Aquarius” (2022), sendo elas, maioritariamente, instrumentais. O cocktail de instrumentos é a fusão frenética de instrumentos birmanesas tradicionais, batidas electrónicas e melodias pop ocidentais.
Pontuada de batidas creativas, proporcionam de forma estimulante e inovadora, tornando-se uma experiência mágica para quem assiste.
Explosions in the sky
Seguramente, um dos grandes concertos do festival. O quarteto post-rock do Texas partilhou, na íntegra, o álbum de 2003, “The Earth Is Not a Cold Dead Place”. Coincidências ou não, Paredes de Coura, é um dos sítio onde a harmonia é impossível de ser desconcertada, e não haveria melhor título correspondente a ser partilhado. O concerto de Explosions in the sky é uma experiência que merece ser vivida com todos os sentidos reunidos. Não se trata de um concerto qualquer. Há algo no crescente de tempos e compassos que fazem com que haja a tal “explosão” nos céus de paredes de Coura. Acordes marcantes, e compassos hipnotizantes que proporcionaram lágrimas de forma terapêutica. Foi bonito de ser viver.
Lorde
A atuação que fechava os 4 dias de Vodafone Paredes de Coura, foi a da cantora Nova Zelandesa, Lorde. Começou com o seu hit: “Royals”, e depois partilhou todas as músicas que marcaram uma geração, num compasso nostálgico pelos álbuns: “Pure Heroine” (2013), “Melodrama” (2017), terminando no seu mais recente “Solar Power” (2021). Apesar do seu lapso na localização do concerto, com múltiplos “Hello/thank you Porto”, a artista escolheu a dedo o festival e demonstrou estar verdadeiramente feliz e grata por tocar neste espaço e para o público português que tanto a acarinha. Terminou com a frenética “Green Light” que foi o interlúdio para a custosa despedida de mais uma edição memorável deste festival.
Até à próxima!
Maria Alves da Silva
Mariana M. Martins
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