Invicta & lendária cidade do Porto

Reza a lenda que a cidade do Porto foi o palco de histórias que se eternizaram de lendárias. Hoje em dia, são os minerais das pedras que desenham as veias da cidade. Debaixo das pedras reside a veracidade, o diz que disse, e o poder da palavra espalhada de geração em geração. O roteiro começa com um mítico manjar em Pedras Rubras, seguindo os caminhos de ferro até à imponente estação de São Bento, cujos azulejos já viram muito mais do que meros turistas a tirarem fotografias e pessoas a imitarem o Francis Obikwelu até ao comboio que tem a ansia de partir.

O convite para um passeio lendário foi lançado! Leva calçado confortável, mapa e a sede de querer saber mais sobre a antiga, mui nobre, sempre leal e invicta cidade do Porto.

 

Dom Pedro na taberna – 4 ou 5 Efes?

Na noite de 8 para 9 de Julho, após o célebre desembarque do exército libertador ocorrido na Praia do Pampelido, o rei D. Pedro IV pernoitou no lugar acolhedor de Pedras Rubras. No dia seguinte, entraria na cidade do Porto onde, posteriormente, ficaria cercado durante um ano (o cerco do Porto), garantido com esse sacrifício pessoal e da cidade (daí a designação “invicta”) a definitiva derrota do absolutismo no nosso país. Nessa noite, em Pedras Rubras, para jantar o rei deslocou-se a uma taberna local que tinha um nome deveras curioso “3 Efes”.

O exausto proprietário prestes a encerrar a taberna, depara-se com o senhor de barbas grandes, olhar curioso, e atira a pergunta:

 

– Recomendaram a sua taberna para vir comer qualquer coisa. Mas qual o motivo desta curiosa designação? Porquê 3 efes?

– Ora, patrão, porque é afamado um prato que nós aqui costumamos preparar e que tem 3 efes …

– Qual é ?!

– Então … Fanecas … Frescas … Fritas!

– Pois então, prepara-me um prato dessas famosas fanecas e traga-me também um café.

 

O oficial comeu com vontade, debaixo do olhar atento do jovem taberneiro. Porém, quando se levantou para se ir embora, ao levar as mãos ao bolso o militar percebeu que não trouxera dinheiro consigo. Contudo, após um primeiro instante de alguma atrapalhação, o militar desenvencilhou-se daquela situação constrangedora socorrendo-se do humor:

 

– Olha rapaz, afinal não são três mas sim 4 efes!

– Porquê, senhor?

– Ora repara – Fanecas, Frescas, Fritas … Fiadas!

 

O jovem ainda ensaiou um esgar de protesto, mas o olhar duro do cliente secou-lhe as palavras. Nem conseguiu sequer, murmurar uma despedida ao oficial que, entretanto, saíra.

A noite caíra, a taberna estava finalmente vazia e o balcão estava limpo. Dirigiu-se para a porta com o intuito de encerrar, pensando ainda no militar que saíra sem pagar. Paciência. Nem diria nada ao patrão.

Meditava sobre esta questão quando foi surpreendido pelo regresso intempestivo do militar.

 

– Ouve lá rapaz, tu és o dono da casa?

– Não, senhor. Mas é quase como fosse. Estou prestes a ficar noivo de uma das filhas do patrão. Preciso apenas de juntar mais algum dinheiro e o patrão lá me deixará casar com a filha. Se o senhor oficial quiser mais alguma coisa é só dizer e pagará depois, quando por aqui voltar a passar …

 

O militar sorriu e estendeu-lhe a mão, retribuindo:

 

– Obrigado, mas não tenciono tornar a passar por aqui. Agradeço-te a franqueza e, dado que estás para casar, aqui tens duas peças de ouro. Dá para pagar as fanecas e… para comprares uns brincos para a tua noiva. Adeus!

 

E antes que recuperasse a fala enquanto olhava espantado para as moedas de ouro na palma da sua mão, já o militar tinha saído.

Pensou que não o iria voltar a ver, mas enganou-se. No dia seguinte, quando D. Pedro IV e o seu estado-maior partiram de Pedras Rubras em direção ao Porto, o jovem taberneiro, o patrão e a filha estavam à porta da taberna, assistindo ao espetáculo do desfile militar. Reconheceu de imediato o oficial, montado no seu belo cavalo, sendo igualmente a figura mais proeminente – era o rei, e quando passou à porta da tasca piscou-lhe o olho.

Os anos passaram e todos os anos o jovem contava a história quando lhe perguntavam o porquê da taberna se chamar “4 Efes”. Porém o número mais correto de Efes seria 5 e não 4, tendo em conta a exclamação do jovem taberneiro quando o rei disse-lhe que não pagaria a conta.

 

E a lenda continua  …

Fonte das sete bicas – o milagroso manancial de água

Estamos no início do século XIX. O povo encontra-se em plena overdose de serotonina na mais famosa e concorrida festa popular da região – a Romaria da Senhora da Hora. As do Senhor da Pedra (Gaia) e as do senhor de Matosinhos dificilmente lhe chegam aos calcanhares.

 

Qual será a razão para tamanha popularidade?

 

O alicerce do seu sucesso reside no facto de ser uma das primeiras grandes festividades populares da região que começavam na primavera e prolongavam-se pelo verão fora. Contudo, outros três pilares de crenças sustentam a fórmula de sucesso destas romarias entre os diferentes grupos etários.

 

As grávidas faziam fila indiana em direção à imagem da Senhora da Hora, pedindo uma “horinha boa e curta” para o momento do parto que se avizinhava. Como ninguém tinha prioridade, é de imaginar uma longa fila luminosa.

 

Para além disto, e para livrar as crianças do “mal-da-gota” (epilepsia) foi crença e costume até meados do século XX, uma prática que tinha lugar durante a missa do dia da festa, aquando da elevação da hóstia. Neste momento, as mães e avós davam uma “mistela” cuja receita fará arregalar os olhos de tão impressionante que é, atentai:

 

 

E para limpar a imagem mental da mistela anterior, prendemo-nos agora no terceiro refrescante motivo associado à fonte das sete bicas, muitíssimo requisitada pelas propriedades casamenteiras. O rapaz ou a rapariga, desejosos de durante o ano encontrarem o seu parceiro ideal, teriam, nesse dia da festa beber de um só folego das sete bicas que a fonte possui.

 

A euforia da participação na presente romaria foi registada e partilhada no “O comércio do Porto”, nos finais do século XIX:

 

“Para quem conhece a predileção do nosso povo pelas romarias e pôde gozar o sol esplendido que hontem nos mimesou com uma temperatura amena e convidativa, fácil é presumir como seria animada a romaria da senhora da Hora, uma das mais atraentes festas populares que se fazem nos arredores da cidade”.

Contas à moda do Porto ou … do porto?

Das expressões que mais se entoam pela cidade, que sublinha como os portuenses fazem os seus negócios, quando o final de uma conta que envolve vários indivíduos e que para não ferir os sentimentos de ninguém “cada um paga o seu”.

 

Será assim mesmo ou estaremos perante uma mitificação?

 

Contas à moda do Porto ou … do porto?

Numa cidade que, pelo menos, desde a idade média, se alicerçou como um povoado com uma enorme vocação portuária e mercantil, a seriedade dos seus mercadores e a forma transparente das suas contabilidades certamente terão contribuído para esta fama das corretas e justas “contas à moda do Porto”. Num cenário de administração pública da cidade as contabilidades municipais passavam por guardar o dinheiro no “cofre das sete chaves”, que só podia ser aberto quando os diferentes vereadores e detentores das chaves estavam todos reunidos, garantindo assim que só na presença e com o consentimento de todos se podia mexer no dinheiro do referido cofre. Parte daqui a origem de uma outra famosa expressão “dinheiro fechado a sete chaves”.

 

Mas, apesar dos argumentos apontados nos parágrafos anteriores, as “contas à moda do Porto” e a associação à fama da cidade por contas justas não passam de uma mera lenda que foi crescendo em torno desta conhecida frase.

 

Contudo, e como já diversos autores explicaram, a origem desta expressão nada tem a ver com o Porto. Isto é: nada tem a ver em exclusivo com o Porto. Com efeito, o “Porto” está em causa é o “porto”. Neste último, os marinheiros, por terem que partir dali, têm que saldar de imediato as suas contas e convém que sejam bem feitas. Por outro lado, e nomeadamente nas tabernas onde muitas vezes se reuniam em grandes grupos constituídos por homens provenientes de diversos navios e destinos, e porque não sabiam quando e onde se voltariam a cruzar, era importante que cada um pagasse a sua parte e não deixar qualquer dívida nem acerto a pagar posteriormente aos outros marinheiros do grupo.

Sendo a cidade do Porto uma importante estrutura portuária não admira que nas suas lojas e tabernas ribeirinhas, estas contas “à moda do porto” se tenham tornado também em “contas à moda do Porto”. Daí, a confusão embrulhada em lenda pela atividade portuária estar de mãos dadas com a cidade que partilha o mesmo nome.

O fantasma da última freira de São Bento

Estamos no coração do Porto, na gare da estação ferroviária de S. Bento, inaugurada a 5 de Outubro de 1916. Antes de abrir caminhos de ferro, era desde o início de século XVI o mosteiro feminino de S. Bento de Avé Maria, considerado um dos mais importantes do Norte de Portugal. Após a inauguração da gare, permaneceram as memórias e marcas que evocam o antigo mosteiro e as suas residentes, como é o caso do fantasma da última freira.

 

Desde 1856, quando circulou pela primeira vez um comboio em Portugal, que o Porto e os seus dinâmicos homens de negócio sonham com a chegada do caminho de ferro à cidade. Só em 1877, graças ao génio do engenheiro francês Gustave Eiffel e à construção da sua ponte Maria Pia, é que o comboio que parte da capital chega ao Porto, às estações do Porto (na rotunda da Boavista) e à estação de Campanhã. Apenas uma década depois, em 1887, foi aprovado o projeto da construção de um ramal que traria o comboio para o centro da cidade. O local escolhido para essa nova estação foi o mosteiro de S. Bento de Avé Maria. Ora, quando a decisão foi tomada pela câmara do Porto ainda vivia a última das freiras …

 

O facto da última freira residir não foi preocupante numa fase inicial devido à complexidade técnica dos trabalhos e porque as expropriações eram, como se adivinhavam, longas, litigiosas e difíceis.

 

A última freira acabou por morrer apenas em 1892. As obras arrastaram-se durante 4 anos, sendo que em 1894 se deu início à primeira demolição do mosteiro no meio de uma grande polémica, promovida pelos eclesiásticos católicos para que a igreja do mosteiro fosse poupada à destruição.

 

É certo que mesmo com atraso o comboio chegara a S. Bento, mas não à sua estação. Os atrasos na demolição no mosteiro tiveram como efeito a edificação de uma gare provisória em madeira. Um provisório que, no entanto, se arrastaria, uma vez mais, por longos anos. Dúvidas, sugestões de alteração ao projeto, e impasses burocráticos viriam a arrastar e adiar a data do arranque das obras.

 

A sua edificação demoraria mais uma década a concluir e, pelo meio, a 5 de Outubro de 1910, o país iria assistir à queda da monarquia e à implantação da República. E foi exatamente para assinalar o sexto aniversário de tal acontecimento que, a 5 de Outubro de 1916 se deu, finalmente, a inauguração definitiva da estação central do Porto, agora rebatizada como estação de S. Bento, recordando a designação do velho mosteiro que existira no local.

 

Há, no entanto, quem afiance que a última das freiras, ou o seu fantasma, continua a habitar este local. Não são raras as vezes que se ouvem as suas rezas nem o seu choro pelo desaparecimento do histórico mosteiro. Choro ou riso sarcástico pelo facto do seu tardio falecimento ter contribuído para um atraso arrastado da conclusão da obra?

Eis a questão.

 

Fontes:

CLETO, Joel (2010) Lendas do Porto, Porto: Quidnovi

CLETO, Joel (2014) Lendas do Porto, Porto: Quidnovi

CLETO, Joel (2016) Lendas do Porto, Porto: Quidnovi

 

 

 

Bons passeios!

 

Maria Alves da Silva

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