Opinião: A Arte de Caminhar – Um passo de cada vez
“Caminhar é uma tarefa lenta. É das coisas mais radicais que podemos fazer.”- página 34
Colocar um pé diante do outro, de forma contínua e sucessiva. Esta é a arte de caminhar, assim, tão simples, mas com uma dimensão maior do que aparenta.
Através de uma reflexão bibliográfica e filosófica, Erling Kagge, um explorador norueguês de 58 anos que traz nos seus pés muitos quilómetros, entrelaça as duas vertentes -objetiva/física e abstrata/espiritual- do caminhar. Quem melhor para o fazer do que a primeira pessoa a ter pisado o Pólo Norte, o Pólo Sul e o Pico do Evereste.
Mas esta capacidade de percorrer, passo a passo, longas distâncias, vem muito antes do próprio Homo sapiens. Foi o caminhar que nos permitiu chegar até ele, sendo o nosso veículo para todo o lado durante milhões de anos. Hoje somos marcados por compassos diferentes e a perceção do valor do tempo faz-nos distorcer o uso desta capacidade tão primitiva. Vivemos na era do comodismo, mas também da avalanche de tarefas a cumprir, do multitasking e da suposta perseguição da eficiência. Se existe um caminho mais rápido e fácil, é esse no qual seguimos rumo.
“As jornadas da descoberta não são uma coisa que começamos a fazer, mas sim uma coisa que deixamos gradualmente de fazer” – página 17
Pouco tempo depois de nascermos começamos a dar os nossos primeiros passos, e aí inicia a grande epopeia da descoberta do que nos rodeia. Depois vamos crescendo e as caminhadas que fazemos ao longo da vida vão sendo diferentes, moldadas pelos tempos, moldando-se a nós e nós moldados por elas. Torna-se na jornada do que somos, do que queremos e para onde vamos.
Nesse sentido, segundo Kagge, caminhar parece ser um meio para vários fins. Além dos benefícios físicos, o autor vê o caminhar enquanto forma de sentir o caminho e o mundo com o corpo, viajando simultaneamente com a mente, aproximando ou afastando-nos de nós próprios, dos nossos pensamentos e sentimentos.
“Quanto mais longe caminho, menos distinção faço entre o meu corpo, a minha mente e o que me rodeia. O mundo interior e exterior sobrepõem-se.” página 158
Caminhar surge como forma de conhecer e de observar, de partir em busca de respostas, de encontrar silêncio e novas perspetivas. A própria história é prova disso, marcada pelos testemunhos de Albert Einstein, Charles Darwin, de filósofos como Søren Kierkegaard e Sócrates, ou até de Steve Jobs, que viram nas suas caminhadas uma forma de “pensar melhor” e de encontrar soluções para os seus problemas.
A verdade é que a arte de caminhar vem sem mapa nem instruções, mas é isso que a torna tão peculiar. Pode ensinar-nos liberdade, a possibilidade de avançar mesmo que nos sintamos estagnados, pode ensinar-nos paciência e gestão. Esse caminhar, equilibradamente desequilibrado, que deve concentrar-se em cada passo, um de cada vez, em vez de focar apenas no destino. É o caminhar, umas vezes leviano, outras vezes propositadamente exaustivo e desconfortável, que exige perseverança e adaptação.
Acredito que todos damos usufruto a essa capacidade de caminhar. Podemos sentir que não somos todos artistas, mas praticamos essa mesma arte para chegarmos, eventualmente, onde é suposto chegarmos.
O autor termina questionando o futuro do ser humano, cada vez menos caminhante e cada vez mais sedentário. A resposta talvez seja uma vivência mais profunda do plano emocional e das experiências mentais, mas bem, isso só mesmo andando e vendo! Por enquanto, pelo caminho, precisamos de abrandar e de nos adaptar a um mundo que corre, com a lentidão dos nossos passos. Pelas palavras de Kagge: “Toca a andar”.
“Caminhar tornou possível que nos tornássemos no que somos. Por isso, se caminharmos pouco, também deixaremos de ser aquilo que somos. Talvez nos tornemos em algo diferente.” – página 187
Rita Pereira
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