Opinião: Sentir e saber – O novo livro de António Damásio
Encaixar o ser humano na história da vida na terra é colocá-lo nos últimos capítulos. Contudo, apesar de chegarmos por último, podemos reconhecer que é notável o quanto alcançámos enquanto seres conscientes e pensantes.
No seu mais recente livro “Sentir e Saber – A caminho da consciência”, António Damásio apresenta, de uma forma concisa e transparente, os aparentemente sinuosos caminhos onde problemas científicos e filosóficos se cruzam. Através de quatro capítulos e um epílogo reflexivo, o neurocientista vai apresentando soluções e respostas para os mistérios por detrás da consciência, numa viagem organizada que começa no “Ser” (capítulo I) e que segue caminho no “Representar” (capítulo II), “Sentir” (capítulo III) e “Saber” (capítulo IV).
O autor começa por afirmar que, ao contrário da conhecida passagem bíblica, “No início não foi o verbo”. A evolução da vida deu-se na ausência de palavras, pensamentos, sentimentos e consciência, mas a inteligência esteve sempre presente. As bactérias – primeiras formas de vida – não possuíam (nem possuem) cérebro nem consciência, mas são dotadas de uma inteligência não explícita que as permite detetar o mundo exterior e ajustar o seu funcionamento de acordo com essa informação e com as suas necessidades.
Contudo, entre bactérias e seres humanos distam milhares de milhões de anos e um grande processo evolutivo. É apenas com a entrada do sistema nervoso na equação que começa a verdadeira (r)evolução da vida. Este surge e abre portas ao aparecimento de sentimentos, da mente e de consciência, acrescentando bem-estar ao objetivo inicial de sobreviver e dotando-nos de um outro tipo de inteligência – a explícita/aberta – a qual usamos a par da não explícita conforme a dimensão dos problemas e das exigências diárias.
O segredo do sistema nervoso parece estar no tipo de comunicação que permite entre o corpo e o cérebro, a qual é expressa na forma de sentimentos – “barómetros do estado interior dos organismos” e “pedra base da consciência”.
“Sentimos porque a mente é consciente, e somos conscientes porque os sentimentos existem!” (página 158)
Mas ter mente não é sinónimo de se ser consciente. Apesar de precisarmos de uma mente para sermos conscientes, podemos ter mente sem o estarmos. A consciência, em si, parece ser um estado particular no qual a mente está na posse de conhecimentos que nos identificam como proprietários dessa mesma mente, dos sentimentos e acontecimentos, que nos permitem ter perceção de nós próprios.
Assim, a consciência trouxe uma preocupação acrescida com a sobrevivência, impulsionando uma melhor gestão e satisfação das necessidades dos organismos. Deu-nos a provar o prazer, mas também nos tornou expostos à dor e ao sofrimento e, com isto, levou-nos a criar formas de promover sentimentos positivos e contrariar os negativos.
“Somos marionetes nas mãos da dor e do prazer, ocasionalmente libertados pela nossa criatividade.” (página 169)
Mais do que esclarecer conceitos como a emoção, sentimento, mente e consciência, este livro destaca a importância dos sentimentos como dispositivos informativos, coloca-os no caminho da inteligência artificial e questiona a luta (talvez desnecessária) que criámos entre o sentimento e a razão. É um livro que repensa o homem e a posição que o mesmo conquistou enquanto espécie com uma mente consciente, mas que falha em reconhecer a sua dependência na inteligência inconsciente (ou não) das outras espécies.
O processo evolutivo deu-nos a mão, tornámo-nos seres complexos e a consciência permitiu a criação de um mundo que correspondesse às nossas exigências. Criámos a arte e a religião, a tecnologia e a política, a economia e a filosofia, mas estaremos nós a ser inteligentes na nossa abordagem atual com o mundo? Não estaremos a adotar uma visão corrompida por essa necessidade intrínseca de escapar à dor e amplificar o bem-estar? Para que partes de nós precisamos de estar conscientes?
“Devemos respeitar a inteligência, fenomenal e ainda incompreendida, da natureza.” “Poderá ser útil identificar prioridades e reconhecer a interdependência à medida que lidamos com a devastação que os seres humanos infligiram à terra e à sua vida (…).” (página 268)
Apesar das luzes que António Damásio nos traz, acredito que a consciência será sempre cunhada por essa sua capacidade misteriosa de conseguir “dar vida à vida”, de nos permitir saber que sabemos e que somos, mesmo que não o percebamos por completo. Na luta em perceber se a consciência será mais uma sentença ou liberdade, a verdade é que sem ela a vida decorreria oculta a nós, sem a podermos experienciar.
“Celebremos a riqueza e a confusão com que fomos dotados”. O caminho da consciência continuará em constante (des)construção!
Rita Pereira
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