Opinião: “Uma Questão de Conveniência”- Sayaka Murata
Simples mas perspicaz são as palavras que melhor descrevem a escrita de Sayaka Murata. Em pouco mais de 150 páginas, a autora japonesa delineia uma história original e sensível que nos obriga a questionar a nossa ideia de normalidade.
A personagem principal do romance é Keiko, uma mulher que sempre se sentiu baralhada pelas mais básicas interações sociais. Por essa razão, encontra nas regras e no ambiente controlado da loja de conveniência (o seu local de trabalho) uma fonte de segurança. Este transforma-se num lugar de refúgio onde se sente verdadeiramente útil e confortável.
Foi contratada quando ainda era adolescente mas agora, aos 36 anos, continua a ter o mesmo emprego. Isto, aliado ao facto de nunca ter tido um relacionamento, tornam-na uma estranha aos olhos dos amigos e da família que, para seu espanto e desagrado, parecem sentir-se no direito de criticar e controlar a sua vida.
Keiko não parece convencida a fazer nenhuma mudança mas, ao ver um colega de trabalho – com quem partilha o estatuto de outsider– ser despedido da sua querida loja de conveniência, é forçada a questionar até que ponto não será mais seguro vergar-se às expectativas sociais antes que também ela sofra o mesmo destino.
Devido à sua narradora extremamente peculiar, este livro tem o poder de abordar assuntos sérios, como o papel da mulher e a sexualidade, num tom despretensioso mas ao mesmo tempo brutalmente honesto e incisivo.
Nas passagens em que Keiko convive com as suas amigas, por exemplo, a alienação da personagem em relação às normas sociais é precisamente aquilo que permite ao leitor livrar-se de um certo “filtro cor-de-rosa”. Sem ele, torna-se consciente dos preconceitos que são perpetuados nestes diálogos aparentemente inofensivos.
Também a dinâmica entre Keiko e Shiraha, o colega cujo despedimento desencadeia toda a história, põe a descoberto a primitividade das regras que continuam a reger a sociedade. Além disso, constitui um confronto entre duas personagens que, apesar de se encontrarem numa situação semelhante, nutrem sentimentos radicalmente diferentes em relação à sua própria inadaptação.
Keiko está, no entanto, longe de ser uma heroína perfeita: as suas motivações são muito pouco convencionais e chega a ter comportamentos perturbadores. Mas o esforço exigido ao leitor para se conectar com a personagem é plenamente recompensado à medida que o romance caminha para um final poderoso e comovente.
Curiosamente, esta estranha protagonista não é o resultado de um exercício puramente intelectual. Mesmo após ter alcançado a fama enquanto escritora, Sayaka Murata manteve, durante algum tempo, o seu trabalho numa loja de conveniência. Segundo a autora, a observação da vida quotidiana que este lhe proporcionava constituía a sua maior fonte de inspiração.
Sejam quais forem os laços que a ligam á realidade, esta narrativa é uma fonte de consolo para aqueles que se sentem incompreendidos nas suas escolhas de vida e uma excelente porta de entrada para quem deseja mergulhar no mundo da literatura japonesa contemporânea. Agradará também, sem dúvida, aos leitores fascinados por lojas de conveniência que, pensando bem, devem constituir um público pequeno mas tragicamente negligenciado.
Mariana Gil
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