Reportagem Tremor 2019 – O Coração Insular
A Engenharia Rádio voou no passado dia 9 de abril para a ilha de São Miguel, onde permaneceu durante 5 dias, não só com espírito festivaleiro mas também turístico, para a sexta edição do Tremor . Um festival que se concentra maioritariamente em Ponta Delgada mas que quer ir cada vez mais além e ter impacto em toda a ilha.
Dia 1 – A chegada e o começo
Aterramos em Ponta Delgada às 14:50 (hora local) com o céu um pouco nublado. Olhando para a meteorologia dos dias que seguiam este seria o mais ameno e com menor probabilidade de precipitação de todos, o que se viria a confirmar. À saída espera-nos o carro alugado no qual nos dirigimos para o nosso alojamento dos próximos 6 dias. Rapidamente deixamos as malas e decidimos rumar às Sete Cidades já prevendo o mau tempo que se avizinha. Foi uma aposta vencida. Com as nuvens um pouco altas conseguimos visitar a famosa Vista do Rei para as lagoas das Sete Cidades e deslumbramo-nos com o abandonado Hotel Monte Palace. Tentamos prosseguir a visita até à Lagoa do Canário mas em minutos deixamos de ver o Sol e entramos num nevoeiro cerrado e húmido.
Descemos de volta a Ponta Delgada para o concerto de abertura, marcado para as 19 horas, no Teatro Micaelense com o grande coletivo Ondamarela à frente de mais um projeto, desta vez com a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel (ASISM) e a Escola de Música de Rabo de Peixe.
Ao entrar na sala encontramos um painel de pessoas em palco em representação dos parceiros que fazem o Tremor acontecer e ao centro António Pedro Lopes com a Yuzin e Lovers & Lollypops, a parceria fundadora do festival. António dá as boas vindas ao público, anuncia uma edição esgotada com bastante antecedência e com a maior participação de artistas açorianos até à data, um dos grandes objetivos do Tremor. Com esta proximidade da comunidade a afirma-se cada vez mais, como poderíamos testemunhar no espetáculo que estava prestes a começar. Sente-se muita agitação na plateia com a presença de muitas crianças a correr e com os gritos de entusiasmo das mais variadas gerações. Sente-se os Açores, a comunhão, o orgulho e o amor. O Tremor 2019 começa.
Após uma pequena introdução o pano levanta e surge um imponente conjunto em palco com jovens e graúdos, há cordas, pianos, sopros, percussões, um conjunto de bombos e caixas composto pela ASISM e o público é constantemente encorajado a participar. O concerto atinge o clímax já perto do fim com a frase “Tira a mensagem da garrafa” a ecoar pelo espaço e os papéis distribuídos à entrada, com variadas mensagens, são atirados pelo ar numa completa euforia e comunhão entre o público e o palco. Sentimos que por momentos todas as barreiras são quebradas. Um final muito feliz e com certeza recompensador para o projeto Ondamarela.
É uma bifana em bolo lêvedo comida à pressa que antecipa o primeiro grande concerto do festival, Colin Stetson, que estreia o auditório Luís de Camões. O Saxofonista de renome, que colaborou com nomes como Arcade Fire, LCD Soundsystem, Bon Iver, TV On The Radio, Lou Reed, Tom Waits, entre outros, reinventa completamente o som a que estamos acostumados de um saxofone criando momentos em que parecem existir três músicos em palco quando há apenas um. Sozinho em palco consegue criar melodias sonantes enquanto faz soar graves que mantêm a continuidade da ideia e sustêm as transições, criando músicas polifónicas com um instrumento solista e caminhando para algo sempre mais denso e místico. Para conseguir concretizar tudo isto o músico mostra-nos o seu enorme fôlego deixando, mais uma vez, o público rendido.
Dia 2 – Apagão na estufa
Após uma visita à exuberante Lagoa da Furnas, local de confeção dos famosos cozidos, descemos à vila para os provar. Seguimos para o Parque Terra Nostra onde chegamos sob imensa chuva. Apesar da entrada ser um pouco mais cara que noutros locais com águas quentes, deixamos a nossa recomendação, não só por se poder banhar nas famosas águas, mas também pela oportunidade de percorrer o enorme e lindíssimo jardim.
É à hora marcada, 17 horas e 30 minutos, que recebemos a notificação na app Tremor de que o primeiro Tremor na Estufa de 2019 será no local onde já nos encontramos, não com um mas dois concertos. A começar no casino das Furnas, We Sea + Pedro Lucas. O grupo açoriano, depois de ter marcado presença na edição passada, volta agora com um “acrescento” mostrando que a criação açoriana está longe de morta. O segundo teria como protagonistas os YIN YIN, uma das bandas do cartaz que mais nos despertava a curiosidade. Com apenas uma cassete e um single editados, os Holandeses estavam inicialmente anunciados no Parque Terra Nostra mas acabam por tocar também no casino, atendendo à chuva que se fez sentir toda a tarde. Este Tremor na Estufa fica marcado pelas constantes falhas de eletricidade, levando mesmo os YIN YIN a terminar após terem tocado apenas três músicas que nos deixaram com apetite para muito mais.
A noite de quarta-feira inicia-se ao som de Grails, novamente no auditório Luís de Camões. A banda Norte-Americana saúda-nos com o seu rock progressivo e com um instrumental a soar pelos seus fender conjugados com sintetizadores bem equilibrados e uma bateria por vezes muito alta, tudo sincronizado com projeções de filmagens antigas eróticas ou ambientes mais góticos que nos transportam para os desertos Americanos ou ambientes mais escuros e pesados. Uma atuação contínua e limpa sem margem para erros.
Partimos para uma pequena caminhada até ao Arco 8 para ouvir a primeira banda a pisar este palco, são eles Fumaça Preta, o trio internacional baseado em Amesterdão que se apresenta diante de nós com pinturas faciais seguido de um nítido boa noite. Cantando sempre em espanhol, a banda ora nos faz querer abanar a cabeça aos ritmos mais pesados como a seguir mexer o nosso corpo com a sua energia contagiante, não ficando ninguém indiferente a Alex Figueira na bateria, a cantar ou a puxar pelo público em português, espanhol ou inglês. As linhas de baixo groovy e o rasgar da guitarra aquecem a sala e afastam o vento frio na rua que torturava as pessoas na fila à espera para conseguirem entrar.
Dia 3 – Tempestade Gardner
Começamos o dia pela Ponta da Ferraria. Com a maré baixa matinal conseguimos testemunhar o famoso encontro da água termal com a oceânica, porém o vento forte e a agitação marítima desencorajam-nos o prometido mergulho e aproveitamos para passear. Avançamos com a companhia do mar de um lado, a rosnar ao bater nas rochas escuras e do outro com as enormes escarpas negras. Prosseguimos pelo litoral até Mosteiros onde pisamos a fina areia preta e paramos para o almoço num café local.
Regressamos e atravessamos meia ilha para, finalmente, visitar a fábrica do chá da Gorreana, um local afável que ganha um lugar no nosso coração. A fábrica abre portas aos visitantes sendo possível circular livremente, falar com os trabalhadores, passear pelas plantações e ainda provar os únicos e “verdadeiros” chás que ali são produzidos, o verde e o preto, tudo gratuitamente. No regresso a casa há ainda tempo para uma pequena caminhada até ao Salto do Cabrito, uma cascata com cerca de 40 metros e, por fim, o merecido descanso em preparação para a terceira noite de concertos com destaque para o regresso de Jacco Gardner a São Miguel.
O primeiro concerto da noite acabaria por ser adiado uma hora, na sequência de um atraso no voo da banda, provocando uma sobreposição com o concerto seguinte, dos portugueses Pop Dell’Arte. Consequentemente o hall do primeiro andar do Teatro Micaelense, que se encontrava cheio, foi gradualmente esvaziando. Ainda assim, Jacco e a sua acompanhante executaram o psicadélico eletrónico simplista do seu mais recente álbum Somnium, rodeados por sintetizadores e pelo público, com colunas a envolver ambos, num set muito intimista e feliz.
Partimos para o Ateneu de Ponta Delagada onde o rock agreste dos Pop já soa e há uma fila para entrar. É o comeback da banda irreverente do rock português dos anos setenta, liderada por João Peste. Para assinalar 30 anos de carreira, teve direito a um documentário, Ainda Tenho Um Sonho ou Dois – A História dos Pop Dell’Arte, e à devida tour. No palco permanece uma pequena loucura e confusão, com guitarras a soar e a parar, João a proferir palavras que dificilmente se percebiam e o som bem mais alto do que aquilo que a sala pedia.
É então que somos surpreendidos pela notificação da app que haverá uma segunda ronda de YIN YIN, no Arco 8, após a atuação de Cave. Chegamos ao destino ainda a tempo das últimas músicas da banda de Chicago que apresenta o seu rock instrumental influenciado pelo psicadélico e pelo Krautrock, sempre com o público a aderir. O concerto acaba e espera-se ansiosamente pelos “putos” holandeses.
Dia 4 – Ponha aqui o seu pezinho
No penúltimo dia do Tremor, dia Ribeiragrandense, aproveitamos a manhã para visitar a parte sudeste da ilha, passando pela Lagoa, o ilhéu, a ermida de Vila Franca do Campo, submersas pelo intenso nevoeiro, já habitual nos últimos dias. Decidimos almoçar na freguesia piscatória da Ribeira Quente. Ao chegar, descobrimos uma incrível cascata apenas acessível a pé por uma ponte entre dois túneis. Esperamos pelas 17:30 para ficar a saber que o último Tremor na Estufa será na vila de Rabo de Peixe, concelho de Ribeira Grande, a antecipar os concertos da noite.
A população desta vila será protagonista do concerto que está prestes a acontecer, Despensas Rabo de Peixe + ZA! e o fotógrafo Rúben Monfort. Ouve-se ao longe na rua as castanholas, o anunciar da vinda das Despensas, uma tradição particular da vila, com influência espanhola, em que no primeiro fim de semana das Festas do Espírito Santo saem à rua grupos de homens com castanholas, violas, acordeões e violinos, acompanhadas com danças alusivas às principais atividades da vila, como a pesca. Seguidos logo pelas Despensas Os Companheiros, formados com voluntários locais, os ZA! e muita cerveja, segundo os mesmos. Após a procissão e a dança, Os Companheiros entram na sala, juntam-se a meio e ficam completamente envolvidos pelo público. Começam a apresentação com o trabalho dos últimos dias, ajudados pelo público numa forte interação, culminando com uma interpretação da famosa música popular Pezinho da Vila, que surge numa só voz.
Regressamos a casa para o jantar e aguardar a nossa vez de participar no tão misterioso espetáculo Instytut B61 – Interstellar SUGAR Center de Ponta Delgada. Minutos após a saída do autocarro do ponto de encontro, todo ele forrado para que não fosse possível visualizar o exterior, demos chegada a um armazém, que rapidamente se revela numa fábrica, rodeados por diversa maquinaria. No local, é nos falado do universo e das estrelas. A atividade gira em torno das fases da vida de cada tipo de estrela e até mesmo da relatividade do tempo, pelo que cada sala ou ponto para onde éramos levados correspondia a uma dessas fases. As várias fases ficaram marcadas por um casamento, uma curta rave com papel desfiado por todo o lado, uma degustação de algodão doce, uma interpretação em Polaco da canção Psycho Killer dos Talking Heads e por muito mais. Por fim, após mais uma interpretação do cantor polaco e já perto do portão da fábrica, é nos pedido para sairmos para lá do mesmo para assistirmos à última fase da estrela mas rapidamente o cientista, que nos tinha acompanhado até então, tinha voltado para a fábrica e fechado o portão nas nossas caras deixando toda a gente muito confusa e perdida.
Apesar da noite já ir longa, ainda nos dirigimos à Ribeira Grande para assistir aos últimos momentos de Vive La Void, teclista de Moon Duo que iria atuar no dia seguinte no Coliseu Micaelense, e ao concerto dos brasileiros Teto Preto, no Teatro Ribeiragrandense, uma das salas mais belas da ilha. A mistura tribal com a eletrónica e com os sopros torna o momento memorável, fortemente marcado pela química sentida entre a vocalista e o dançarino, que após a sua entrada na sala, com a vocalista ao colo, como que sem vida e a gritar até chegarem ao palco, mereceram no fim uma invasão do público ao palco.
Dia 5 – O Fim
Chega o último dia, o dia de mais concertos e algumas sobreposições, o dia que já deixa um travo de saudade e nostalgia. Aproveitamos para ficar até mais tarde na cama com a chuva intensa da manhã que viria inclusivamente a adiar o primeiro concerto da tarde.
Lieven Martens, a tocar não no parque municipal mas sim no Teatro Micaelense, mostra-nos os Açores em que viveu durante anos, quando em 2013 gravou Canto Arquipélago nos Açores, um álbum que é quase um poema sinfónico com base em field recordings. O belga não veio apresentar essa obra mas sim, The Cow Herder, uma sonata em homenagem a um guardador de vacas da Ilha do Corvo que criou em residência. Por momentos, naquela sala, foi possível respirar os Açores e fomos, através da música, transportados para as montanhas, lagoas, escarpas, e para as praias negras, sentimos o correr dos rios e das ribeiras.
Descemos a rua para ouvir o hip hop açoriano mais fresco do momento, no Solar da Graça, são os LBC com Diogo Lima, uma mostra do panorama atual da música açoriana muito bem conseguida, resultado de mais uma residência artística. Um fino para o caminho até Haley Hendricks, um dos nomes revelação do cartaz, e deparamos-nos já com uma longa fila à porta. A artista americana estreia-se em Portugal na belíssima igreja do colégio e que música seria mais perfeita e doce para igualar à beleza do espaço se não a de Hendricks, letras e melodias que embalam o público com histórias que nos aconchegam a acompanhar as pausas para afinações.
A saltar de concerto em concerto e sempre com tempo para mais um fino, é assim que vemos David Bruno, apesar do cancelamento de concerto-bingo com comes e bebes e Balada Brassado, o artista Gaiense traz aos Açores a sua obra O Último Tango em Mafamude, que como anuncia ao início é sobre as vivências em Mafamude uma ex-freguesia do seu concelho de origem. Passamos desta homenagem aos Gaienses e às raízes de um povo para o jazz puro e de encantar de Hailu Mergia. O músico etíope que se apresentou aos teclados apenas com mais dois músicos, o baixista e o baterista. Antes do jantar há ainda tempo para a artista revelação Maria Beraldo, no Ateneu, que para surpresa nossa se apresentou sozinha em palco, com maquilhagem e adereços faciais estonteantes, acompanhada pelos beats, guitarra e ainda um clarinete.
Um jantar à pressa e corremos para o Coliseu Micaelense onde nos esperam os Bulimundo para estrear o espaço. Após a vinda da banda, também cabo-verdiana, Os Tubarões, no passado setembro ao Milhões de Festa, organizada pela Lovers & Lollypops e onde a Engenharia Rádio esteve presente, era agora altura de levar o funaná às ilhas. Com uma hora e dez de dança no coliseu e cachecóis de cabo-verde no ar a banda anuncia que irá tocar a última música que passa a duas a pedido do público e que só não chega a uma terceira devido ao cumprimento de horários. Uma pausa para respirar e beber uns finos enquanto esperamos por Moon Duo.
É às 23:30 que está marcada a estreia da banda psicadélica americana no arquipélago dos Açores e uns minutos após a hora marcada, assim acontece. Com um concerto seguro e quase sem interrupções, Moon Duo apresentam-se com um jogo de luzes a cruzar com projeções, criando uma sensação 3D. Um ambiente propício a viagens pelos cosmos e a lugares que nos tinham sido descritos no dia anterior pelo Instytut B61. Seguimos, uns metros ao lado, para a Garagem Antiga Varela, que apresenta o palco ao centro em 360º e onde anteriormente tinha tocado João Pais Filipe, para o concerto de ZA!. O duo espanhol parece ter nele toda a música do mundo, que designam de post worldmusic, e que rapidamente descobrimos que a energia também. A concretizarem talvez o concerto mais feliz desta edição do Tremor, com intervenção de um saxofonista e com as Despensas Os Companheiros a subirem ao palco para um final em euforia. O Tremor acaba para nós com este enorme pulsar de energia que nos faz querer mais, mas o corpo rapidamente nos recorda a fadiga dos dias anteriores e puxa-nos para casa, através de uma caminhada que nos permitiu refletir sobre os dias vividos e sobre a nostalgia que já se faz sentir.
Esta reportagem não poderia ser apenas sobre os concertos e restantes atividades que aconteceram no Tremor, porque este festival vai muito além da música e também do conceito de festival. O Tremor é a viagem, o encontro, o verde saturado, a chuva e o sol, a comida, as pessoas insulares, continentais e estrangeiras, as lagoas, a terra negra, as águas quentes e férreas. É tudo isto e mais. É obviamente música e nunca deixará de ser turismo, mas muito sustentável e harmonioso com a ilha. Posto isto, o Tremor são os Açores, ou como se vai ouvindo, Tremor é Amor, e é neste contexto que faz sentido existir. Assegura-nos o coração que se vai espalhando em bocadinhos pelos concertos, pelas pessoas e pela ilha, mas os momentos que mais nos ficam guardados são as atuações das residências onde se sente o criar de um triângulo amoroso entre a comunidade, o artista e o público, resultando num clímax de felicidade, amor e compaixão onde juramos que por momentos é possível sentir um verdadeiro tremor. O coração insular está em boa forma, com tendência a melhorar e a deixar no nosso o desejo de abandonar o continente e a juntar-se a ele.
Foram cinco dias de concertos, exposições e atividades artísticas que envolveram, diariamente, cerca de 1500 pessoas, num festival com lotação esgotada e que apesar da maioria do público ser proveniente do arquipélago conta ainda com pessoas de 15 países dos 5 continentes. A sexta edição a bater recordes com 10 residências artísticas, que permitiram o envolvimento direto de 300 habitantes em projetos de criação artística original. Num ano em que as condições climatéricas impuseram algumas adversidades à realização de algumas das atividades previstas para o exterior e atrasos nos voos dos artistas e do público, a organização do Tremor conseguiu ainda assim adaptar-se a uma condicionante que fará sempre parte da ilha e do festival.
O festival insular é organizado desde 2014 pela Yuzin, Lovers & Lollypops e António Pedro Lopes
Pedro Oliveira
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